Orações

Celso Rodrigo
2 min readMar 22, 2020

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Depois do banho, colocou a sua bermuda surrada, passou desodorante e permaneceu ali, estático durante alguns segundos. Como se o tempo paralisasse e os segundos parecessem horas. Dirigiu-se à estante, pegou a garrafa de whisky, seu copo e foi para a varanda de sua casa. Selecionou uma playlist qualquer de blues, acendeu o cigarro e sorveu sua bebida como se aquele momento fosse o mais importante e necessário de sua vida.

Sua mente estava dividida entre as melodias tristes do slide percorrendo as cordas do violão, naquela voz carregada de solidão e tristeza, como se a canção estivesse desenhando sua alma e transbordando em palavras aquilo que estava preso em sua garganta. Não ter um ouvinte, um confidente, era o peso que ele carregava em seu espírito já curvado pela angústia.

Questionava, em sua mente, o ir e vir das pessoas que passavam na rua. Fim de tarde, alguns retornando de seu trabalho, outros indo ou voltando do mercado. Outros com a sacola de pão para o café da tarde. Queria ele entender de fato esse deslocamento que sentia em relação ao resto do mundo. Julgava-se desajustado.

Longe do vitimismo que atinge muitos, já há muito tempo havia descartado a autocomiseração. O “coitadismo” não lhe cabia. Era ciente de que não se ajustava as regras. Buscava compreender suas motivações para escapar da sanidade. Isso mesmo que lemos, tentava entender sua loucura para não entregar-se à ela.

Outro gole. Outro trago. O nada.

Sentado, com os olhos fitando uma parede qualquer, sua mente cessou de pensar. Nada de pensamentos, nada de ruídos, nada. Apenas a leveza do ser condensado em poucos segundos de silêncio.

Mais um gole.

Desta vez, o whisky trazia, além do sabor dos barris de carvalho, tinha um quê de aflição. Apreciava o momento, sabendo que chegaria ao fim. Que o copo ficaria vazio, o cigarro seria apenas cinzas, a noite vagarosamente viraria dia e seria obrigado a levantar e cumprir sua rotina de trabalho.

Almejava com todas as forças que ficasse preso àquele tempo, não mudaria nada. O desassossego havia cessado, a busca da compreensão teria chego ao fim? Não tinha essa resposta, mas por um instante percebeu que vivia para ter aquela calmaria alcançada.

Outra dose. Outro cigarro.

A loucura é prazer. O tormento, seu remédio. O blues, seu deus. O whisky e o cigarro, as suas orações.

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Celso Rodrigo
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Written by Celso Rodrigo

Não me leve tão a sério, sério!

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